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O CAOS DA FALTA DE PROFISSIONAIS DE SAÚDE E A SUSPENSÃO DOS CURSOS DE MEDICINA

Há um espectro que ronda a saúde pública brasileira: o medo. A tragédia da Covid-19 completa um ano, a tomarmos fevereiro e março de 2020 como ponto de partida. Ao que consta, apenas no Brasil, há o registro de dez milhões de casos, com cerca de 250 mil óbitos. É muita morte. É muita dor. É muito sofrimento. Para além dos efeitos mediatos e imediatos da pandemia há uma repercussão negativa em todo o sistema de saúde pública (e também de atendimento privado, a exemplo dos convênios). Já não há leitos para atender a demanda. O que já era desordenado torna-se ainda mais caótico. A Previdência pode se revelar imprevidente.

Há necessidade de ações coordenadas e, no plano mais objetivo, de leitos hospitalares, de centros de atendimento, de políticas de isolamento. Mais. Há necessidade de médicos, de enfermeiros, de administradores hospitalares. Profissionais da saúde alcançam o limite da exaustão. Há entraves burocráticos que podem ameaçar vidas, expectativas, direitos, sonhos, necessidades. Refiro-me, neste artigo, a um aparente nó interpretativo atado por órgãos reguladores (na área de saúde e educação) que resultam na impossibilidade da formação de médicos no território nacional. O cidadão espera que o Judiciário desate esse nó.

O desespero aumenta, na medida em que não há notícias de aumento de vagas para cursos de Medicina nas faculdades públicas. Resta, como alternativa, o ensino privado, a par das instituições confessionais. De fato, o artigo 209 da Constituição dispõe que o ensino é livre à iniciativa privada, atendidos o cumprimento das normas gerais da educação nacional. Ao poder público o texto constitucional reserva competência para autorização e avaliação de qualidade. A Lei nº 9.394, de 1996 (LDB), confere à União competência para coordenar a política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e sistemas e exercendo função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais.

A Lei nº 12.871, de 2013, que regula o programa Mais Médicos, dá sequência à essa articulação normativa e institucional. No entanto, debilitada em sua técnica legislativa (como demonstramos, há um problema gravíssimo de legística), a lei dos Mais Médicos revela uma surpreendente contradição. Por um lado, o programa se destina à formação de médicos para o Sistema Único de Saúde (SUS), com objetivos, entre outros, de diminuir a carência de médicos nas regiões prioritárias para o SUS, a fim de reduzir as desigualdades regionais na área da saúde, bem como de fortalecer a prestação de serviços de atenção básica em saúde no país (incisos I e II do artigo 1º da lei).

Essa premissa justificou, entre outros, oportunidades de trabalho para médicos formados em instituições de educação superior estrangeiras, por meio de intercâmbio internacional (inciso II do artigo 13 da lei). Essa circunstância foi amplamente divulgada pela imprensa, inclusive com coberturas marcadas por forte sensacionalismo. Na classe médica (principalmente), há um amplo debate relativo à recepção de médicos estrangeiros pelo Brasil, notadamente por razões que transcendem das bases de formação a barreiras de compreensão linguística. Paradoxalmente, a lei do Mais Médicos dispõe que a autorização para o funcionamento de curso de graduação em Medicina, por instituição de educação superior privada, será precedida de chamamento público (artigo 3º, caput). É aqui que se concentra o problema a ser resolvido com urgência.

O chamamento público ao qual se refere a norma é uma cláusula aberta que confere discricionariedade que pode resultar no esfacelamento definitivo de nosso modelo de saúde o que não seria (seguramente) o objetivo da lei. O MEC, por intermédio da Portaria-MEC nº 328, de 2018, a pretexto de complementar a Lei nº 12.871, de 2013, regulamentou a suspensão do protocolo de pedidos de aumento de vagas e de novos editais de chamamento público para autorização de cursos de graduação em medicina. Resolveu-se pela suspensão, por cinco anos, da publicação de editais de chamamento público referentes a mencionada autorização. De igual modo, a regra valeria também para requerimento de aumento de vagas. A indigitada portaria é de 2018 (antecede à pandemia). Por seus próprios termos, teria vigência até 2022. Já em meio à crise pandêmica, recentemente a Portaria MEC nº 1.067, de 23 de dezembro de 2020, ao estabelecer o calendário anual para protocolar pedidos de autorização de novos cursos excluiu os cursos de medicina. Permanecem vedadas as possibilidades de credenciamento convencional e por chamamento público.

Uma portaria (ato infralegal) restringe o direito de petição, constitucionalmente garantido, dado a que a todos são assegurados, independentemente do pagamento de taxas, o direito de petição aos poderes públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder (inciso XXXIV, “a”, do artigo 5º). A ilegalidade é flagrante na medida em que se limita direito (de petição e de autonomia universitária, entre outros) por meio de ato regulador. O abuso de poder se revela no exercício de prerrogativa cujo resultado contraria os fundamentos pelos quais o dever de regulação deveria ser exercido.

E porque a lei não exclui da apreciação do Judiciário nenhuma lesão ou ameaça de direito (inciso XXX, do artigo 5º, da Constituição) a recusa ao recebimento do pedido de criação de novos cursos de medicina ou de aumento de vagas deve ser corrigida rigorosamente por meio do mandado de segurança (inciso LXIV, do artigo 5º, da Constituição). A portaria (como ato normativo e também como ato administrativo) exige fundamentação por intermédio de estudos técnicos, que entidades interessadas na oferta de cursos de medicina precisam debater e colaborar. Por isso, não basta o mero recebimento formal do requerimento, a ser despachado (sic) com uma negativa contundente, amparada na portaria. O recebimento do pedido é apenas o início de uma discussão a ser feita sob os holofotes, com controle e acompanhamento de todos os interessados, dado o interesse público primário que informa a questão.

A Portaria MEC nº 328, de 2018, parece hostilizar o devido processo legal, o direito de petição, o livre acesso à saúde, os padrões de livre-inciativa, a autonomia das instituições de ensino superior, o princípio absoluto da transparência e os parâmetros de razoabilidade. Além do que, foi concebida antes da pandemia, não resistindo ao teste da ulterioridade. As autoridades sanitárias não podiam prever (em 2018) o desastre que sobreviria dois anos depois. A portaria revela, substancialmente, um enorme retrocesso.

O Brasil precisa de mais médicos. Por isso, a necessária intervenção judicial para correção dessas antinomias e lacunas. Não atingimos esse objetivo — mais médicos — se não formarmos profissionais no Brasil, com urgência, a menos que busquemos médicos no exterior, o que revelaria, inclusive, descrença para com os médicos que temos condições de formar: um paradoxo da legislação atual. Resolver esse paradoxo é um modo de enfrentamos o espectro que ronda a saúde pública brasileira: o medo.

Por: Liziane Paixão Silva Oliveira

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